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Medusa

Eu tinha ouvido rumores sobre uma fala equivocada, acho que até assisti em tempo real o que se dizia, mas soou para mim como algo tão absurdo, que levei certo tempo até compreender que não se tratava de um erro de áudio, mas de um pensamento muito deslocado no tempo e no espaço. E na fragilidade que me envolve, neste universo de museus em que habito, procurei a força para entender e talvez como expressar algo a respeito. Lembrei desta deslumbrante Medusa, de Caravaggio (peço licença para reproduzir a imagem aqui, acredito que seja por uma boa causa) e do encantamento que foi vê-la no MASP, instituição icônica que agora se move para acompanhar o universo a seu redor. Esta pintura é maravilhosa porque, na sua superfície irregular, não importa por qual ângulo nos posicionemos, os olhos dela parecem se mover e nos encaram, assustados e assustadores, portadores de um horror e de uma beleza indissociáveis. Que momento de despertar para a alma, porque, pelo menos para mim, traz uma questão que é sempre cara a muitos artistas como tema, o horror diante dos absurdos que o homem pode fazer por ignorância. Esse episódio da citação equivocada me deu a mesma sensação, só que sem qualquer pingo de encantamento e humanidade. É simplesmente o horror, o corpo brutalmente mutilado jogado no chão, como coisa, sem qualquer respeito, dignidade ou afeto. Não se trata de discutir o que é moralmente apropriado, mas de se permitir que se mate, que se prive da liberdade uma criatura por conta de sua orientação sexual, sua cor de pele, seu gênero, sua fé religiosa. É preciso mais que tolerância, é preciso que todos compreendam que estamos em movimento, como o universo, e que temos de escolher para onde seguir, se dançamos a dança da vida e adentramos com ela o século XXI ou se ficaremos nos arrastando por corredores sombrios, onde Medusas, em nada belas como esta aqui reproduzida, ficarão a nos fitar, julgar e punir.

Publicado originalmente no Facebook em 1 de outubro de 2014


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